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2021 – o ano que morri

Quarta, 31 de março de 2021.

Este ano eu morri. Falo isso após meu renascimento. Confesso que achei que não poderia voltar a sorrir, mas desde ontem estou assim, com os lábios escancarados – de lado a lado.

Foram duas semanas horríveis. Exatos 14 dias dos primeiros aos últimos sintomas de Covid 19 – doença tratada toda em casa, com apenas algumas idas ao Pronto Atendimento da @unimedsantosoficial .

Os especialistas dizem que quando se consegue tratar o vírus em casa é porque se pegou a doença de forma branda. O que vivi e vi Ronaldo passar – os sintomas inciaram com ele, dias antes – não desejo para ninguém, nem para o senhor que ocupa o principal cadeira da democracia brasileira.

Muitas vezes achei que fosse morrer. Algumas noites não dormi pensando se deveria deixar tudo preparado para caso o pior acontecesse. Passei contatos importantes para os meus pais; avisei meu filho que agora mora em outro Estado; e o mais importante: passei a senha do meu celular para minha cunhada  Vanessa – acho que ela aguentaria tudo o que tem nesse aparelhinho que carrego 24 horas nas mãos, sem se surpreender tanto 😜.

Teve dias que achei que Ronaldo faria sua passagem, alguns até corri (sem nem conseguir respirar) com ele para a Unimed para ver o que estava acontecendo. Em uma noite não tive forças para levantar da cama e se quer para chamar alguém para ajudar. Ele estava muito mal e eu só consegui pegar na sua mão e pedir que apertasse a minha para que eu soubesse que continuava ali. Assustada e realmente pensando o pior, adormeci.

Quando acordei, na manhã seguinte, ele estava 100% bom, em comparação ao que tínhamos acabado de viver. Parece que que todo mal da noite foi para expulsar o que restava da doença em seu corpo.

Ainda permaneci na cama após ele. Em uma das noites, eu realmente achei que tinha morrido. Levantei e senti algo que não consigo descrever. Posso apenas dizer que estava estranha. Então fiz como nos filmes e, em pé, olhei para cama para ver se meu corpo continuava deitado. Ele não estava ali, eu continuava viva e lutando.

Na 14° noite após os primeiros sintomas, corri novamente para o PA. Uma dor de cabeça alucinante, causada por uma novidade, a sinusite – que me deixou literalmente o dia todo na cama, de olhos fechados sob o travesseiro, com o corpo em comichão, sem me permitir dormir. A sensação que tinha é que havia um rinoceronte pisando no lado direito da minha face. Eu só desejava que alguém viesse com uma pinça gigante tirar de dentro do meu rosto o que causava aquela pressão.

Na madrugada, fui atendida pelo Dr. Fábio de Souza – um médico que já virou “parça” nessas aventuras noturnas das últimas semanas e que nos trouxe muita segurança. Ele me viu, analisou, medicou na hora e prescreveu antibiótico nasal e corticóides. Posso dizer que ele ajudou a tirar esse rinoceronte com as mãos devidamente enluvadas, tanto que no 15° dia acordei nova.

Na temida terça-feira de 30 de março, quando os comandantes das forças armadas nacional pediram demissão conjunta deixando o povo brasileiro apreensivo, eu estava bem, em paz e sorrindo. O motivo? Eu havia renascido. Para celebrar tomei um belo café da manhã na varanda, vendo minhas plantas, respirando vida, apreciando o lindo céu azul. Sempre dei valor às pequenas coisas, com a ciência que são elas que nos mantém firmes no dia-a-dia e na manhã de ontem comprovei isso.

Enquanto milhares de irmãos estão morrendo sem oxigênio, eu sobrevivi e tenho ar à vontade. Isso não é pouca coisa. Escrevo entre lágrimas, porque nos dias mais difíceis do meu isolamento, vi conhecidos, colegas próximos de profissão, amigos e até um tio muito amado partindo de Covid. Em um único dia foram quatro pessoas do meu círculo de relacionamento.  Quatro. Assustada, eu só pensava que poderia ser a próxima a entrar na contagem regressiva de alguns tantos que insistem em fazê-la.

Foi a coisa mais surreal que já vivi e que vi alguém viver ao meu lado. Tive pessoas da minha própria família que já pegaram a doença, alguns fizeram a passagem em decorrência dela. Eu só queria poder continuar, cuidar das minhas filhas, realizar o que precisa ser vivido e transmitido e não trazer essa dor para meus pais, minha avó, meus irmãos, sobrinhos, primos, tios, sogra… família. Eu não queria entrar nessa contagem de “menos um”, eles não mereciam e nem merecem mais essa dor. Ninguém merece. Ninguém.

Ainda assim tem gente que debocha da doença ao nosso lado; em manifestações; em rede nacional no programa mais visto no Brasil; e até dentro de todas as esferas do poder público. Pior: o povo, muitos no desespero, continua sem entender que ele não precisa se matar para viver. É dever da Prefeitura, do Estado e da União nos manter. É para um período como este que os mantemos até hoje, pagando imposto até da bala de compramos. Sim, nós pagamos para eles nos assistirem numa necessidade como essa – do menor ao maior, cada um a sua maneira.

Você não precisa sair da sua casa para ir trabalhar, se sujeitando a andar num coletivo cheio todo dia. Acreditamos que Ronaldo pegou a doença no ônibus, indo trabalhar e a trouxe para cada. Somos gratos que nossas filhas não pegaram. Entenda que você não precisa se expor atendendo centenas de pessoas todos os dias. Você pagou 15, 20, 30 anos de impostos para ser cuidado pelos governos numa hora como essa e quando começou a fazer isso, seus pais já faziam. É um pagamento eterno e geracional que temos feito. Isso significa que eles devem nos cuidar.

Comércio precisa fechar as portas e só serviços essenciais devem funcionar sim. O comerciante que tiver condições, pode trabalhar de portas fechadas, com atendimento remoto. O povo não precisa doar alimentos para prefeitura montar e doar cestas básicas. O povo precisa apenas que o governo cumpra a sua obrigação e arrume meios para isso. Essa ação se chama política. Aquela palavrinha que muitos dizem odiar, mas que é parte essencial da nossa vivência em sociedade e que não deve mais ser ignorada. A política deve ser feita e, no Brasil, remodelada.

Não queremos mais politicagem, ela está nos matando e levando milhares diretamente para as poucas covas que ainda existem. Queremos ações políticas eficazes, apenas para poder viver com saúde e dignidade; apenas para respirar o ar que o planeta livremente ainda nos dá; apenas para acordar no dia seguinte e olhar para quem está ao nosso lado e dizer “bom dia”.

Eu morri e como alguém que renasce apenas clamo que os governantes eleitos nas urnas tupiniquins apenas trabalhem para que nós, brasileiros, possamos viver nossa humanidade. Não quero mais saber que a pandemia é mundial, uma vez que fechamos março como líder universal em número de mortes por Covid 19. Quero ver as ações aqui. Quero que nossos governantes se inspirem no que os outros países estão fazendo para combater o vírus. Claramente o sucesso deles tem sido maior que o nosso. O sucesso daqueles países mais pobres do mundo, onde pessoas morrem de malária, tem sido maior que o nosso. É sério que os surfistas, comerciantes e comerciários atormentados não conseguem ver que tem algo muito errado aí?

Tudo o que restava de tolerância em mim acabou quando morri e neste renascimento lutarei o que tiver que lutar pela vida, com as armas que tiver, por mim, por ti e até por aqueles que se negam a enxergar.

Por hoje nada mais tenho a falar.

Flávia Souza




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