01
abr
Dezessete dias
Hoje é primeiro de abril e a história que vou contar aqui não é nada de mentira. Quem desse fosse levemente inventada, mas ela é real – mesmo começando com uma numerologia impressionante. Vocês sabem que para nós brasileiros, 17 não é lá um número considerado bom. Na verdade, já há que o evite em sua contagem. Quando, na falta de uma bola de cristal, adivinharia eu que viveria 17 dias surreais a partir daquele 13 de março? Não sei se esta jornada vivenciada teve algo de cabalística, como os números parecem sugerir. A verdade é que não entendo nada de cabala ou numerologia, mas meu lado místico curte mesmo viajar nessas coincidências.
Geminiana, sonhadora e avoada que sou, parti a pé naquela linda tarde de sábado para uma caminhada com destino à resolução de situações que precisavam urgentemente de ação. Passo a passo, lentamente, cheguei à minha primeira parada. Não fiz tudo o que planejara, mas prometi logo mais voltar. Peguei o que necessitava e segui o meu caminho. Nas mãos carregando carcaças do que poderia vir a ser mais um sopro de vida nos meus dias e assim, cheguei ao meu segundo destino.
De lá, fui andando atrás da minha terceira parada, que aconteceu sem sucesso, vindo a ser necessária viver a quarta e quinta parada. Devidamente orientada, segui para um sexto lugar, onde finalmente encontrei o que precisava. Deixei ali uns bons talkeys e caminhando, para casa voltei.
Jamais imaginei que aquela seria minha última caminhada em vida. Foram muitos quilômetros percorridos à pé. À noite, passei desolada, a febre desconhecida chegara. Não para mim, ainda bem, mas para alguém que era meu e já ali me doeu. As horas que se seguiram foram cruéis e, menos de dois dias, era eu a sentir dores reais. Inicialmente achei que era fruto daquela longa caminhada, mas então vieram a tosse, a fraqueza, a sudorese constante, a falta de ar e o sono profundo. Tudo tão intenso que não era incomum dormirmos cerca de 20 horas por dia – assustando até a mim, fã confessa da fictícia princesa adormecida.
Na manhã de terça a sentença: era mesmo a doença, o temido vírus chegou à minha casa. À noite foi minha vez de testar e o positivo estava lá. Isolados no quarto continuamos a ficar, com duas filhas ainda pequenas para cuidar. O susto foi grande e o medo maior. Nos primeiros dias, meu marido estava bem. Ele só tinha febre. Parece estranho dizer isso, já que não tive qualquer alteração na temperatura, ainda assim, fiquei pior que ele.
De longe, minha mãe tentava me cuidar, receitando bruxarias em forma de vitaminas e chás. “Prepara uma garrafa de água com dois dentes de alho. É um excelente antiinflamatório”. Como eu dizer que levantar eu não conseguia e que nem alho tinha? E no outro dia, lá ela vinha: “Tomem agrião com leite pela manhã, vai restaurar os pulmões rapidinho”. Ela sabe que não tomo leite, mas insistia. Tudo bem, também não tinha. Imagine agrião, então? Quando fiz essa revelação, recebi um sonoro: “Que horror! Não tem alho, leite e agrião?”. É, eu não tinha praticamente nada.
Pausa aqui um sábio e necessário conselho: jamais posterguem aquela tão importante compra do mês. Por preguiça, já estava a 10 dias prometendo a mim mesma que amanhã ao mercado iria. Fiquei doente, em casa, sem forças e nem arroz tinha. O que nos salvou nos primeiros dias, foram os itens do kit alimentação que havia separado para doação. Então passamos de macarrão, com molho e um restinho de bolacha cream cracker totalmente insossa.
Ressalto que até aí sentíamos cheios e sabores. Mas não demorou para o vírus levar embora nosso olfato e paladar. Demorei a perceber esse sintoma. O gosto dos alimentos, que passei a comprar por aplicativos, estava estranho, mas achei que era de uma possível febre interna que eu passara. Assim trago mais uma revelação: apesar de não ter um dia se quer de febre, a sensação que ela me tomava era diária.
Vocês também não fazem ideia do cansaço que o coronavírus traz. É indescritível. Os poucos passos que dava, do quarto à cozinha, para pegar água ou algo para comer, pareciam uma maratona. A sensação piorava com o uso constante da máscara em casa. Levantar para tomar um banho rápido, era extremamente exaustivo. Mas aos poucos, fomos reagindo e as coisas foram se acertando. Fizemos boa parte das compras do mês por aplicativo e já com tudo o que precisávamos em casa, continuamos a viver de bolacha e pão na maior parte do tempo. Ter pão, quando não se consegue passar muito tempo em pé para nada, foi bênção nesses dias. Posso dizer que os conselhos diários da minha mãe – dados pelas digitações do meu pai numa rede social, escrevendo: “alimente-se bem”, não foram seguidos, mas foi justamente o pão que nos salvou.
Aliás, tivemos muitos anjos ao nosso redor, cuidando da gente, do jeito que dava. Sou grata pelas frutas, medicamentos e pães que na minha porta carinhosamente deixavam. Sou grata pelas mensagens diárias, difíceis de serem respondidas, com preocupação e amor. Pelas orações e vibrações positivas pela minha família. Se não fosse isso, nem sei como seria.
Vivemos pouco mais de duas semanas de terror. Eu mesma não sabia que planos arranjar, mas acreditava que deveria agir já que minha vida e a do meu marido pareciam estar por um fio. Passei alguns comandos e deixei para que os nossos cuidassem do resto. Sei que se precisassem, eles não mediariam esforços para dar o melhor para os meus. Acho que de tudo o que vivemos lidar com esses temores foi o mais difícil.
Ainda tive muita dor de cabeça e hoje, no 19° dia após os primeiros sintomas que invadiram as nossas vidas, trato uma sinusite pesada. A primeira da minha história. Ronaldo logo começou a passar por tudo o que passei e chegou a ficar pior do que fiquei. Teve muito enjôo, tontura e chegou a ficar totalmente sem ar. Numa das últimas noites, ele passou tão mal que achei que o perderia ali, na cama. Mas vida voltou a ele e depois, a mim.
Foram exatamente 14 dias muito pesados para cada um de nós, mas seguimos aqui para contar e lembrar que até mesmo o mais brando dos casos, como é considerado o que vivemos, pode ser aterrorizante. O uso de máscara, álcool gel e o fique em casa o máximo que puder são as únicas garantias de que poderemos sobreviver a esse descaso, diante desta pandemia em nosso País.
Fique bem e se cuide, para poder cumprir a promessa de voltar e a colcha de retalhos continuar.
Flávia Souza
Tags: coronavírus, Covid 19, Flávia Souza, Pandemia, Relatos, Relatos de um grão na areia