01
set
Sinal verde aos estupradores?
O que dizer desta semana em particular? Uma semana em que a violência de gênero no País apareceu de forma acentuada na mídia e foi muito comentada nas redes sociais. Da denúncia da escritora Clara Averbuck contra o motorista de Uber que a estuprou à libertação do homem, preso em flagrante, por ejacular no rosto e pescoço de uma mulher no ônibus na grande São Paulo.
Clara não fez boletim de ocorrência contra o abusador, por não confiar no sistema. Cíntia Souza, a vítima do coletivo, acreditou no sistema. O criminoso, Diego Ferreira de Novais foi preso em flagrante. Logo descobriu-se que ele tem 15 passagens pela polícia, incluindo três prisões por estupro.
O que ele praticou no ônibus é recorrente. Segundo a legislação, o que foi feito contra Cíntia também é estupro. Mas ainda há quem ache que não, que foi só atentado violento ao pudor. Esta é hora em que eu, aos 40 anos de idade e mãe de três crianças, paraliso.
Me coloco no lugar da Cíntia e não sei o que sentir, a não ser nojo. A aversão não é só pelo ato em si, mas por todo o contexto e banalidade da situação. Eram pouco mais de 13 horas quando ela foi surpreendida pelo criminoso. Os estupradores não se preocupam mais em esconder suas ações entre quatro paredes, matagais, terrenos baldios ou ruas escuras e desertas. Eles nos agridem à luz do dia, na frente de todo mundo, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.
Infelizmente, para algumas pessoas, parece que é bem por aí mesmo. Como é o caso do juiz que deu a sentença da soltura de Diego. O juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto diz não ver “constrangimento tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”. Por tal razão, ele defende que o crime “se amolda à contravenção e não estupro”.
Minha cabeça parece que vai explodir em pensar que esse magistrado não viu constrangimento ou violência no ocorrido. Se não viu nada disso, é porque para ele, tal situação deve parecer normal.
Mas vamos ao que diz a legislação. O Artigo 213 do Código Penal, reformulado em 2009, afirma que estupro consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena – sem agravantes – é de seis a dez anos de prisão.
Mesmo que o texto do Artigo 213 abra margem para um amplo leque de interpretações, é claro o despreparo dessa autoridade para lidar com tal tipo de crime. Infelizmente, ainda há muitos operadores do direito na mesma situação que ele: aparentemente, sem qualquer intimidade com a Lei Maria da Penha.
E porque digo isto? A Lei 12.015 de 2009 extinguiu o crime de atentado violento ao pudor, incluindo essa conduta em estupro. Logo, entende-se que qualquer ato com sentido sexual praticado com alguém sem seu consentimento, até mesmo um toque íntimo, hoje é considerado estupro pela lei.
O que Diego fez com a Cíntia molda-se, com perfeição, no que diz essa legislação. Mas por conta de pessoas como juiz José Eugenio, como acreditar na punição de criminosos? Como fazer com que mulheres esclarecidas, como Clara, confiem no sistema? A decisão do juiz pareceu-me uma resposta transparente de sinal verde aos estupradores.
Uma resposta que eu não aceito e não aceito que amigas minhas aceitem. O que Diego fez não foi uma simples contravenção penal ou atentado ao pudor. Ele estuprou Cíntia, no transporte público, às 13h20 da tarde. Ele a tocou, com seu sêmen, sem que ela autorizasse. Ele deixou marcas profundas em seu emocional. Ele a violentou física e psicologicamente.
E para que não ajam dúvidas desta última parte, a legislação define a violência psicológica como qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher. A vítima do coletivo disse, em uma entrevista: “minha cabeça está confusa, não tenho tido paz. Dormir, comer, está tudo muito ruim. Quando durmo, sonho com algo parecido. E parece que estou cansada o tempo todo”.
Homens como o magistrado em questão podem não entender o que se passa com Cíntia e, talvez por isso, relativizem tudo. Mas quem já passou por algo que seja ligeiramente semelhante ao que ela vivenciou, entende, com perfeição, a confusão, a inquietação e o cansaço por ela relatado.
O que ela sente é impotência por ser mulher, num mundo ainda dominado pela cultura machista. Escrevo isso, sentindo a vibração de cada célula do meu corpo, dizendo não à decisão equivocada do juiz. Não quero amanhã ser a Cíntia da vez. Não quero que minhas filhas sejam. Não desejo nem que a filha desse juiz, caso ele a tenha, seja a próxima vítima do coletivo. Aliás, nem o próprio pai de Diego aceitou a soltura determinada durante a semana, parecendo já prever que o filho atacaria novamente, como o fez.
Não ao seu sinal verde para os estupradores. Não a relativização do ato. Estupro não é atentado violento ao pudor. Estupro não é contravenção penal. Estupro é crime grave e deve ser visto e entendido – por todos – como é. Não sou eu quem digo. É a lei.
- Flávia Souza
A autora é Jornalista da Spiraal Comunicação Inteligente e Diretora Executiva do Projeto Cinderela, grupo que presta apoio à mulheres vítimas de violência na Baixada Santista